PALAVRAS-CHAVE

Autoridade, Estado, tirania, resistência, magistrados populares.

INTRODUÇÃO

Mensagem de Calvino e o Direito de Resistir ao Estado; Resistir à autoridade, desobedecer, desobediência civil etc., para o pensamento cristão; essas palavras podem soar como estranhas. O assunto pode parecer explosivo, prejudicial e até mesmo proibido. Como já vem de muito longe a pregação em favor do cumprimento da lei, da ordem, da hierarquia; da submissão às autoridades, o princípio da autoridade foi totalmente assimilado e impregnou-se ao cristianismo.

Às vezes isso foi feito de forma clara e exacerbada; noutras ocasiões foi usada a liberdade para impor a autoridade, de forma mais disfarçada ou dissimulada.

Porém, se desobedecer também significa não se submeter, transgredir, infringir, violar e desobedecer à lei, então, na verdade, a desobediência consiste em não se sujeitar à vontade e à autoridade de outrem ou mesmo não ceder às suas decisões. Precisamente é o que este artigo enfoca.

O objetivo é demonstrar que a teoria calviniana da resistência à autoridade ocorre por meio de representantes denominados magistrados populares (ou inferiores).

Isso parece ter ficado claro no capítulo político das Institutas (capítulo XX do livro IV); no qual se verifica a evolução havida no pensamento e na postura de Calvino quanto à resistência legítima às autoridades superiores; – o que pode ser verificado tanto nas sucessivas edições das Institutas quanto em seus outros escritos.

Tal evolução se dá principalmente mediante uma exceção concedida por Calvino aos magistrados populares; como os legítimos vingadores, como as autoridades escolhidas por Deus e pelo povo, para oferecerem resistência às autoridades superiores que cometessem injustiças ou a tirania.

As questões que se colocam são: com essa exceção, teria o pensamento calviniano se revestido de um potencial revolucionário? Em Calvino; esse destaque para o verdadeiro papel dos magistrados do povo, ainda que fosse um pormenor ou uma exceção em seus escritos; acabou por constituir-se no viés pelo qual o potencial revolucionário calviniano influenciou outros calvinistas? A resposta que se oferece é que, embora fosse apenas um detalhe; aí é que se encontrava a colaboração de Calvino para o desenvolvimento de uma teoria de resistência à autoridade iníqua, ou ao tirano.

I. OBEDIÊNCIA E RESISTÊNCIA NOS PRIMÓRDIOS DA REFORMA

Ao propor uma filosofia da história, Hegel (luterano); pensava que o projeto de uma tal filosofia era viável, sob a condição de que se tentasse fazer uma análise filosófica de como a liberdade se realizou na história.

Sob esse aspecto, pareceu a Hegel que a Reforma foi o momento em que essa liberdade tornou-se consciente de si mesma, em que ela; voltando-se para si, para a subjetividade, descobriu que a realização da liberdade era algo interior.

Ao afastar-se o indivíduo do exterior, ao perceber que ele mesmo é cheio pelo Espírito Santo; a partir de seu contato com a divindade, desencadeia-se uma mudança radical dentro da Igreja; pois deixa de existir uma classe privilegiada à qual pertença, de modo exclusivo, o conteúdo da verdade.

Deixam de existir diferenças entre clérigos e leigos. Todos se tornam sacerdotes, pois a todos é concedido o Espírito Santo.

Cada um tem assim a obrigação de realizar em si mesmo a reconciliação, suprimindo qualquer tipo de mediação. Esse é o conteúdo essencial da Reforma: “o homem é determinado por si mesmo para ser livre” (Hegel, 1973, p.11).

Partindo da subjetividade da Reforma, Hegel acaba; segundo afirmam muitos de seus intérpretes, relativizando a autoridade religiosa, mas absolutizando a política, na medida em que a razão individual compreende a racionalidade da lei; na medida em que o particular assume, na sua racionalidade, o geral.

Portanto, colocar a interpretação individual da Bíblia como norma primeira de vida e ação; e em nome dessa interpretação recusar obediência ao Papa; era bem mais que uma ousadia: era a própria subversão da ordem vigente.

Com isso, foram lançados os fundamentos da distinção entre cristianismo e Igreja, algo, na maturação de quatro séculos, levou a tensões nem sempre satisfatoriamente resolvidas, tais como a da pergunta a respeito da possibilidade de uma fé cristã fora da Igreja.

Assim, a Reforma foi a primeira grande revolução dos tempos modernos, uma revolução religiosa num mundo subdeterminado pela religião.

As mudanças provocadas pela Reforma não se limitaram às questões eclesiásticas ou teológicas. Essa influência vai além da religião, conforme aponta Max Weber (1864-1920); em seu clássico Ética protestante e o espírito do capitalismo; dizendo que o capitalismo moderno encontra sua raiz mais profunda na visão teológica da existência humana, tal como a concebia o calvinismo (Weber, 1996, p. 233).

Para uma introdução à teoria de Calvino; acerca da resistência ao Estado, é necessário voltar primeiramente a atenção para Lutero e aos primórdios da Reforma.

Naquele inicio do século XVI o clima era de perseguições aos protestantes, envolvendo todo o norte da Europa, onde eram violentas as tentativas de reunificar o cristianismo.

Na Alemanha, na Inglaterra e Escócia, na França etc., havia momentos de crescimento do protestantismo, outras vezes perseguições e recrudescimento.

O questionamento que surgiu por parte dos reformadores e a urgência exigida para sua resposta, acrescida do contexto de temores constantes acerca da sobrevivência da própria fé protestante; eram acerca da obediência devida às autoridades e acerca do direito de resistir legitimamente aos magistrados que agiam com injustiça.

Como as comunidades calvinistas reagiram em prol de sua sobrevivência? Como as demais comunidades protestantes reagiram? Como resistiram a estes Estados que os massacravam? A obediência às autoridades instituídas por Deus foi passiva ou houve uma resistência ativa? Com todas essas questões havia real interesse e incentivo para o nascimento da teoria do direito constitucional de resistir (legitimamente) ao Estado.

Com base nesse arcabouço histórico, a introdução à teoria de Calvino acerca da resistência ao Estado encaminha primeiramente a atenção a Lutero; nos primórdios da Reforma. Calvino participou da segunda geração deste movimento de reforma e regeneração religiosa, iniciado aos 31 de outubro de 1517 e que se autodefiniu a partir de 1520.

A partir do século XVII essa revolução passou a ser conhecida como “Reforma Protestante”.

II. A INFLUÊNCIA DE LUTERO E DOS LUTERANOS

Desde seu início o movimento reformado atraiu a atenção de magistrados e príncipes, desde patronos e beneficiários até seus opositores.

Os primeiros líderes e porta-vozes da Reforma tentavam, por sua vez, obter o apoio destes magistrados superiores e inferiores.

Até mesmo para verem-se livres da disciplina eclesiástica à qual eram sujeitos, esses líderes eclesiásticos apelavam aos governantes seculares.

Esses governantes seculares acabavam então se envolvendo na administração eclesiástica, com as questões de finanças, com o quadro burocrático e até mesmo com a questão doutrinária.

Isso vinha ocorrendo desde a fase final do Sacro Império Romano Germânico.